A história do bairro da Luz
De localização privilegiada, o bairro foi considerado durante muito tempo como porta de entrada da cidade
Desde sua formação, o bairro da Luz passou por diversas transformações no âmbitos espacial, social e econômico. Originando-se em uma área de várzea dos rios Tamanduateí e Tietê, foi local de pastagens, chácaras e posteriormente das residências da elite. De localização privilegiada, entre duas linhas férreas de grande importância para o transporte de produtos e pessoas, o bairro da Luz foi considerado, durante muito tempo, como porta de entrada da cidade.
Ainda que essas transformações tenham ocorrido muito antes do século XX, foi somente a partir de então que sua urbanização passou a se acentuar, tendo sido considerado um dos mais elegantes bairros da cidade na época. Interligado ao Bom Retiro e à Santa Ifigênia, o bairro da Luz também sofreu influências destas outras regiões, marcadas intensamente pela imigração, responsável pela origem da indústria têxtil e do comércio, elementos presentes na dinâmica espacial e na paisagem do local.
Foi a partir das décadas de 1960 e 1970 que a região da Luz passou a presenciar a saída das camadas de renda média e alta fundamentalmente para a região Sudoeste, assim como das classes baixas para regiões periféricas. A partir deste momento, a região central da cidade passou a ser local de fixação das classes muito pobres, encontrando nos edifícios desabitados uma possibilidade de moradia.
Formação do Bairro da Luz
O bairro da Luz, localizado na região central da cidade de São Paulo, anteriormente ocupava uma região denominada “Campo do Guaré”, o que em língua indígena significa: “matas em terras alagadas”. O nome foi dado em razão dos alagamentos provenientes das cheias dos rios Tamanduateí e Tietê, o que levou a região a ser ocupada por criadores de gado desde o século XVI, motivados pelos bons locais de pastagem.
Em 1583, os Campos do Guaré foram doados ao senhor Domingos Luiz, que mandou erguer uma Igreja à sua Santa de devoção, Nossa Senhora da Luz, o que posteriormente determinaria o nome do bairro. Até o final do século XVIII, a região da Luz ainda era pouco ocupada, em maioria por chácaras, dentre as quais a mais conhecida é a Chácara do Arouche.
Tanto o Caminho do Guaré (atual Avenida Tiradentes), considerado a saída da cidade para o norte, quanto o caminho que atualmente percorre a rua Brigadeiro Tobias, permitiram o crescimento do bairro da Santa Ifigênia. Este tem como origem a criação da Freguesia, em 1809, ligada à Paróquia de Santa Ifigênia. Encontrava-se na bifurcação destes antigos caminhos coloniais, voltado para a “Cidade Nova”, na época considerada uma localização privilegiada.
Em 1810 foi aberta a Rua Santa Ifigênia que, até a Rua Elesbão (atual rua Aurora), concentrava a população mais rica. A Rua dos Bambus (atual Avenida Rio Branco) era ocupada por estudantes, o que explica a existência de muitas “repúblicas” na região. Em 1825 foi aberto o Horto Botânico, tornando-se um atrativo para os moradores da cidade, especialmente para a elite. Foi somente por volta de 1870 que o mesmo foi remodelado, ganhando chafarizes, esculturas e grades, passando a ser chamado de Jardim da Luz.
O crescimento da cidade de São Paulo deu origem à uma grande obra de engenharia: o Aterrado de Santana. Finalizado por volta de 1825, este projeto buscava conter as cheias constantes nas várzeas do rio Tietê e Tamanduateí, permitindo a expansão do comércio e melhor ocupação da região, onde até então ainda predominavam as chácaras e pastagens.
No ano de 1860, por iniciativa do Barão de Mauá, iniciou-se a construção da ferrovia “The São Paulo Railway Company”, com o objetivo de escoar a produção cafeeira do interior do Estado para o Porto de Santos. A ferrovia, inaugurada em 1867, logo se tornou um importante meio de transporte de passageiros do interior para o litoral do Estado. Além disso, marcou profundamente o desenvolvimento do bairro da Luz, que se transformou na porta de entrada da cidade, recebendo um grande e constante fluxo de pessoas.
A partir de 1872 a região viu ocorrer o desaparecimento das antigas chácaras, levando a uma intensa transformação da região. Durante o governo de João Teodoro Xavier de Matos, o bairro da Luz passou por uma revolução urbanística. Foi promovida a ligação entre as estações ferroviárias da Luz (São Paulo Railway) e a do Norte (Estrada de ferro do Norte), rasgando rua que receberia o seu nome (rua João Teodoro). Ocorreram arruamentos como os das ruas Alegre e General Osório, implantação de residências de fazendeiros de café, fábricas e lojas, além da já citada remodelação do Jardim da Luz. Em razão da existência das estações ferroviárias, muitos hotéis e pensões também se instalaram no local.
João Teodoro também promoveu o saneamento das margens do Tamanduateí, com a tentativa de drená-las e de transformar os brejos existentes em jardins públicos. Idealizou a abertura de uma rua (futura Helvetia) colocando em contato o bairro dos Campos Elísios com os do Bom Retiro e da Luz. Neste momento havia uma nítida divisão do espaço: a elite ocupava o Campos Elíseos e a Rua Florêncio de Abreu. Já os terrenos alagadiços eram ocupados por habitações precárias, casas de cômodos para aluguel e moradias simples.
A expansão da rede ferroviária ocorreu até 1922, permitindo maior escoamento de produtos agrícolas e industriais, e influenciando significativamente na consolidação de bairros operários nas proximidades da Luz. A partir de 1930, os cortiços eram o tipo de habitação operária predominante na região, além de vilas construídas pelos próprios donos das fábricas. Em 1938 foi finalmente inaugurada a estação terminal da estrada de ferro Sorocabana, atual Júlio Prestes.
O bairro da Luz também sofreu influência da imigração estrangeira, que marcou principalmente a região do Bom Retiro desde 1880, com a entrada de imigrantes europeus, em maioria italianos, através do Porto de Santos. Especialmente em 1888, com a abolição da escravatura e o consequente aumento da demanda por mão-de-obra para a cafeicultura e para a indústria ascendente em São Paulo, o contingente de imigrantes italianos a se instalarem na região central foi ainda maior. A presença dos operários nestes bairros teve como consequência a formação de vilas e cortiços ao lado das fábricas, tendência comum em São Paulo, como explica Petrone (1955):
No que se refere, à paisagem urbana, cumpre observar que, em São Paulo, não se formaram áreas tipicamente industriais, exclusivamente ocupadas por fábricas. Sendo o parque industrial paulistano caracterizado pelo predomínio de fábricas de tamanho médio e pequeno, destinadas principalmente à transformação, o que se presencia é a intercalação de estabelecimentos fabris no meio de residências proletárias e, consequentemente, o aparecimento de verdadeiros bairros mistos, industriais e residenciais a um só tempo.
No período entre 1930 e 1947, a perseguição do povo judeu por Hitler levou ao aumento da chegada de imigrantes seguidores do judaísmo. A instalação dos judeus no bairro do Bom Retiro deixou importantes marcas, como a fundação das duas primeiras sinagogas de São Paulo. Foram estes também que passaram a desenvolver a atividade comercial associada à confecção e importação de artigos de malharia, o que se tornaria uma das principais marcas do bairro.
A presença dos judeus passou a declinar a partir do final da década de 1960, época em que a atividade comercial passava por crises econômicas e muitas famílias que conseguiram prosperar mudaram-se para bairros de classe média e alta, como Higienópolis. Nesta mesma década, uma nova leva de imigrantes, desta vez coreanos, transformou a dinâmica do comércio de roupas com um ritmo de trabalho mais intenso, levando a renovação do comércio tradicional do bairro.
Até a década de 1940, a Avenida Tiradentes já tinha sido estabelecida como a principal via de conexão com a zona norte da cidade, especialmente em razão do Plano de Avenidas de Prestes Maia.
Em direção ao norte, para além do bairro da Luz, a Avenida Tiradentes, “bordejada em toda sua tensão por habitações elegantes e por jardins”, alcançava as margens do Tietê e punha a cidade em contato com a região da Cantareira, através de Sant’Ana.
A ferrovia, por sua vez, não resistiu à concorrência dos automóveis, perdendo sua função inicial de transportar a produção cafeeira. Com a crise do café, a estação passou a atender a periferia da cidade e de outras regiões metropolitanas, servindo principalmente para deslocar os habitantes da periferia para seus locais de trabalho.
A pressão sobre os trens, cada vez maior, em paralelo com o crescimento das vias expressas e do incentivo ao transporte privado resultou no abandono deste meio de transporte pelas classes média e alta, transferindo também o comércio elitista para outros bairros da cidade. Para a região da Luz, sobrou apenas os comércios e serviços populares. A partir dessa época, o padrão de crescimento da cidade se alterou e a expansão periférica passou a predominar.
Ao mesmo tempo em que as classes baixas transferiram-se para regiões mais afastadas, únicos locais em que era possível adquirir um lote que pudessem pagar, as classes altas foram atraídas pelos loteamentos da Avenida Paulista, Jardins e Morumbi. A década de 1970 foi marcada por um gradual abandono da região central, com a perda da população para as outras áreas da cidade, ausência de políticas públicas e crescente criminalidade.
Desde o início do século XX, o crescimento do comércio e serviços foi determinante para a transformação do centro como um todo. O modelo rodoviarista, tão incentivado, também contribuiu para que a região da Luz se tornasse um local de passagem, impessoal, pouco interessante para moradia, ainda que extremamente acessível, pois não privilegiava o uso coletivo do espaço.
Referências bibliográficas
- BASTOS, Sênia; SALLES, Maria do Rosário R. História urbana e hospitalidade: o Bairro de Santa Ifigênia/São Paulo. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP — USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008.
- CUSTÓDIO, Vanderli. São Paulo — das bicas e chafarizes à companhia Cantareira de água e esgotos (1554–1875). Revista IHGB. Vol. 460, 3013, p.51–76.
- FILHO, Gilberto P. C. Bairro Luz: Entre o velho e o novo. UNOPAR Científica: Ciências Humanas e Educação. Londrina, v. 14, n. 3, p. 223–233, Out. 2013.
- GOMES, José Antônio; MARUM, Luana Lasincki. O Bom Retiro: A formação de uma centralidade. Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
- PETRONE, Pasquale. A cidade de São Paulo no século XX. Revista de História. Vol 10 n 21–22, 1955.